Peixes

A Herdade da Mitra é percorrida pela Ribeira de Valverde (sector superior), que pertencente à bacia hidrográfica da Ribeira das Alcáçovas, uma sub-bacia do Rio Sado. Tipicamente um curso de água do sul do país, a Ribeira de Valverde apresenta uma ecologia modelada pelas características do clima Mediterrânico, o que resulta numa elevada variabilidade hidrológica intra e inter-anual, uma vez que o regime de escoamento é fortemente influenciado pelo padrão de precipitação (Gasith & Resh 1999), e num carácter tipicamente intermitente. Isto significa que durante o verão longos troços secam completamente ou ficam reduzidos a pegos isolados, que servem de refúgio à fauna piscícola até que seja restabelecida a continuidade fluvial no outono seguinte (Magalhães et al. 2002; Ilhéu 2004; Sousa, 2010). Esta variabilidade ambiental promove um grande dinamismo na configuração dos habitats e na resposta das comunidades piscícolas, que apresentam elevada plasticidade ecológica (Bernardo et al. 2003; Ilhéu 2004; Sousa 2010; Matono et al 2012). Desta forma, estes rios são sistemas particulares do ponto de vista dos agrupamentos piscícolas e representam um importante hotspot de biodiversidade (Smith & Darwall 2006).

A maioria dos peixes dulciaquícolas nativos de Portugal continental são ciprinídeos endémicos com elevado estatuto de conservação, aumentando este número de norte para sul do País (Cabral et al. 2005). Na bacia hidrográfica do Rio Sado as espécies nativas mais representativas são o bordalo Squalius alburnoides (Steindachner, 1866); o barbo-comum Barbus bocagei Steindachner, 1864; a boga-de-boca-recta Pseudochondrostoma polylepis Steindachner, 1864 e a boga-portuguesa Iberochondrostoma lusitanicum Collares-Pereira, 1980.

Os principais constrangimentos à fauna piscícola decorrem sobretudo dos efeitos da variabilidade hidrológica natural sobrepostos a um longo historial de actividades humanas, destacando-se: i) excessiva captação e represamento de água (e.g. construção de barragens), intensificação de práticas agrícolas e produção de gado, com repercussões ao nível da qualidade da água e da diversidade e integridade de habitats (Matono et al. 2013); ii) introdução de espécies não nativas (Hermoso & Clavero 2011) com impactos muito negativos sobre as espécies nativas (e.g. competição, predação, hibridação, transmissão de patologias e parasitas) (Leunda 2010) e beneficiam na sua grande maioria de temperaturas elevadas (características da região sul), habitats lênticos (favorecidos pela construção de barragens) e crescente perturbação antropogénica (Ilhéu et al. In press). Por estes motivos, as espécies nativas têm registado um acentuado declínio (Cabral et al. 2005). Os peixes são o grupo biológico onde esta tendência tem sido mais evidente, com as consequentes repercussões no estatuto de conservação das espécies e os rios Mediterrânicos encontram-se entre os ecossistemas mais ameaçados globalmente (Smith & Darwall 2006). Num contexto de alterações climáticas, prevê-se no futuro um agravamento da situação, requerendo-se medidas urgentes de conservação (Larned et al. 2010).

 

 

Bernardo JM, Ilhéu M, Matono P, Costa AM (2003) Interannual variation of fish assemblage structure in a Mediterranean river: implications of streamflow on the dominance of native or exotic species. River Research and Applications 19:1-12.

 

Cabral MJ, Almeida J, Raposo de Almeida P, Dellinger TR, Ferrand de Almeida N, Oliveira M, Palmeirim JM, Queiroz AI, Rogado L, Santos-Reis M (2005) Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal. Instituto da Conservação da Natureza. Lisboa.

 

Gasith A, Resh VH (1999) Streams in Mediterranean climate regions: abiotic influence and biotic responses to predictable seasonal events. Annual Review of Ecology and Systematics 30:51-81.

 

Hermoso V, Clavero M (2011) Threatening processes and conservation management of endemic freshwater fish in the Mediterranean basin: a review. Marine and Freshwater Research 62:244-254.

 

Ilhéu M (2004) Padrões de uso de habitat da ictiofauna em rios de tipo mediterrânico. Tese de doutoramento. Universidade de Évora.

 

Ilhéu M, Matono P, Bernardo JM (In press) Invasibility of Mediterranean-climate rivers by non-native fish: the importance of environmental drivers and human pressures. PlosOne.

 

Larned ST, Datry T, Arscott DB, Tockner K (2010) Emerging concepts in temporary-river ecology. Freshwater Biology 55:717–738.

 

Leunda PM (2010) Impacts of non-native fishes on Iberian freshwater ichthyofauna: current knowledge and gaps. Aquatic Invasions 5:239–262.

 

Magalhães MF, Beja P, Canas C, Collares-Pereira MJ (2002) Functional heterogeneity of dry-season fish refugia across a Mediterranean catchment: the role of habitat and predation. Freshwater Biology 47:1919-1934.

 

Matono P, Bernardo JM, Oberdorff T, Ilhéu M (2012) Effects of hydrological variability on fish assemblages in small Mediterranean streams: implications for ecological assessment. Ecological Indicators 23:467-481.

 

Matono P, Sousa D, Ilhéu M (2013) Effects of land use intensification on fish assemblages in mediterranean climate streams. Environmental Management 52:1213-1229.

 

Smith KG, Darwall WRT (2006) The Status and Distribution of Freshwater Fish Endemic to the Mediterranean Basin. IUCN – The World Conservation Union, Gland, Switzerland and Cambridge, UK.

 

Sousa D (2010) Padrões de deslocação e uso do espaço do barbo comum, Barbus bocagei, num curso de água Mediterrânico de tipo intermitente. Tese de mestrado. Universidade de Évora, Évora.